domingo, abril 15, 2012

A fundamentação das ciências da realidade histórico-social: Da atualidade do projeto hermenêutico diltheyano.



DILTHEY, Wilhelm. Introdução às Ciências Humanas – Tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Tradução: Marco Antônio Casanova, Forense Universitária, 2010.


Wilhelm Dilthey (1883-1911) é um pensador mais conhecido do público das ciências sociais do que propriamente pelo da filosofia. Apontado como um dos mais decisivos filósofos na passagem dos XIX-XX, Dilthey criou-se na aquecida cena intelectual berlinense, na qual militavam figurões como Humboldt[1] e Droysen.[2] Nessa ambiência, com apenas 17 anos, Dilthey entendia necessária a tarefa de uma fundamentação definitiva da ciência histórica e, por meio disso, das ciências humanas (= ciências do espírito). A presente intuição da juventude, alentada desde o ano de 1850, será a mesma que se desenvolverá ao longo da sua ampla e eclética obra até as vésperas de sua morte.
Na mesma proporção que assistemática, a obra diltheyana denota grande lucidez ao tratar das ciências humanas numa época em que o modelo metafísico dos idealismos experimenta sua crise em face da ascensão da doutrina positivista em toda a Europa. Ante a esta crise de paradigmas filosóficos, julgava-se que apenas o positivismo poderia garantir o conhecimento válido. Sendo assim, até Dilthey, a filosofia, se não quisesse ser considerada apenas um “discurso literário”, parecia estar fadada a ter que se subordinar à ciência, convertendo-se em uma disciplina acessória assemelhada à ontognoseologia.[3]

NA CONTRAMÃO DO POSITIVISMO
Entendendo que o positivismo[4] exerce uma ação abstrativa sobre as ciências humanas, Dilthey indica que as ciências naturais (abstrativas por excelência em seu modo de agir) isolam a vida de seus fenômenos convertendo-os em objetos. Deste modo, para que as ciências naturais possam apontar um fenômeno como objeto de pesquisa, seria preciso que todo o contexto do mundo vivido seja desconsiderado, daí a avaliação do filósofo segundo a qual a abstração “desvivificaria” o conhecimento.
A resposta diltheyana tanto a este problema, quanto ao dilema filosófico anteriormente mencionado, é dada em sua “filosofia da vida”, quando o filósofo empreende a tal fundamentação das ciências particularidades da sociedade e da história num terreno próprio ao humano. Para esta tarefa, Dilthey dialoga de perto com a obra de Kant[5] e contesta muitas das posições adotadas por um hegelianismo datado.[6] Munido do método hermenêutico de Schleiermacher,[7] desenvolve um projeto que poderia ser nomeado “crítica da razão histórica”. Como a denominação anuncia, Dilthey visa ampliar os termos da filosofia crítica kantiana à ciência histórica, passo dependente da determinação do estatuto do homem na constituição das referidas ciências. Dilthey, assim, investe pesado na fundamentação das ciências humanas, sabendo que é no espaço vivencial total (i.e, o âmbito da vida) que se conquista o autêntico conhecimento do mundo circundante. Por isso, é que podemos asseverar que o centro da filosofia da vida de Dilthey consiste no fato de que a nossa interpretação da realidade não é primariamente cognitiva. Ela inclui sempre orientações das vivências que não podem ser separadas de visões de mundo.

A VIVÊNCIA COMO CRITÉRIO
A proposta da fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história, na obra de nosso autor, ganhou muitas facetas. Por exemplo, em seus escritos adiantados, o filósofo investirá em uma psicologia analítico-descritiva, entendendo que esta seria capaz da tal fundamentação por um viés psicológico-gnosiológica das ciências. Híbrida de elementos da temática da razão histórica, bem como da psicologia, a obra de maturidade do autor se mostra preocupada em criar uma boa relação entre as ciências da realidade histórico-social e as naturais. Para tanto, seria necessário delimitar o lugar paradigmático da existência humana na constituição da vida histórica, esta que, por sua vez, se engendra imediatamente a partir da percepção de uma conjunção histórica peculiar.
Considerado um dos reformadores da hermenêutica, com Dilthey este método sai da esfera puramente filológica, na aplicação de textos bíblicos e jurídicos, para ganhar o caráter propriamente filosófico. É com Dilthey que vemos, por exemplo, enfatizada a clássica distinção entre o fazer das diferentes ciências em pauta: as naturais (e ao lado delas a filosofia), que abstraindo o fenômeno de seu horizonte total, explicam-no, sendo seu conhecimento depreendido de hipóteses (são explicativas no sentido literal de ex-plicare); por seu turno, as humanas tomariam o fenômeno em seu horizonte próprio compreendo-o seu todo (são, portanto, estritamente compreensivas como na origem latina do termo comprehensio).

RECEPÇÃO E CRÍTICA

Sendo considerado por Max Weber[8]o autor que primeiro levou a sério o problema da metodologia das assim chamadas ciências humanas, o filósofo, psicólogo, pedagogo, historiador e biógrafo despertou a admiração pensadores das mais diversas áreas do saber. No Brasil, o trabalho de recepção e crítica de Dilthey vem sendo elaborado timidamente desde a década de 1930, tendo entre os seus estudiosos o historiador Octávio Tarquínio de Sousa[9] e o ensaísta José Guilherme Merquior.[10]
Cem anos após sua morte (celebrados em 2011), escritos de fases distintas da obra de Dilthey vêm sendo traduzidos por editoras com foco universitário. O resultado lacunar dessas publicações ainda não nos permite um perfil nítido do filósofo. Reconhecemos, porém, que estes títulos favorecem o contato do leitor de língua portuguesa com traduções confiáveis de Dilthey que poderão motivar novas e oportunas pesquisas sobre este imprescindível pensador. 

REFERÊNCIAS

DILTHEY, Wilhelm. Introdução às Ciências Humanas – Tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Tradução: Marco Antônio Casanova, Forense Universitária, 2010.

GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Org.: Pierre Fruchon. Tradução: Paulo César Duque Estrada, Editora Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 1998.

LESSING, Hans-Ulrich. Wilhelm Dilthey. Böhlau Verlag GmbH & Cie, Köl, Weimar, Wien, 2011.

RÖD, Wolfgang. O hegelianismo hoje – um anacronismo? In: Hegel: um seminário na Universidade de Brasília. Org.: Nelson Gonçalves Gomes. Editora Universidade de Brasília, 1979.

[1] Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand (1767-1835) filósofo e linguista fundador da Universidade de Berlim (Humboldt-Universität). Fez importantes contribuições à filosofia da linguagem, à teoria e prática pedagógicas e influenciou o desenvolvimento da filologia comparativa. Humboldt é reconhecido como o primeiro linguista europeu a identificar a linguagem como um sistema dotado de regras, e não simplesmente uma coleção de palavras e frases acompanhadas de significados.
[2] Johann Gustav Droysen (1808 - 1884) foi um dos mais importantes historiadores alemães do século XIX. Droysen notabilizou-se não somente pelos trabalhos acerca da antiguidade grega e da história moderna europeia e prussiana, mas também pelas suas reflexões sobre teoria e metodologia da ciência histórica.
[3] É a teoria que se ocupa de tratar como conhecimento dos entes se dá. O filósofo brasileiro Miguel Reale indica que esta se ocupa das seguintes disciplinas filosóficas: Ontologia, Epistemologia, Deontologia e Lógica.
[4] Doutrina filosófica criada por Auguste Comte que propõe à existência humana valores completamente humanos, afastando radicalmente a teologia e a metafísica. O Positivismo associa uma interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana radical.
[5] Immanuel Kant (1724-1804) filósofo alemão, considerado um dos pensadores mais influentes da era moderna. Kant é famoso sobretudo pela elaboração do denominado idealismo transcendental: todos nós trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que não vêm da experiência) para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar.
[6] O hegelianismo é uma corrente filosófica racionalista desenvolvida por Georg Wilhelm Friedrich Hegel. O objetivo de Hegel era reduzir a realidade a uma unidade sintética dentro de um sistema denominado idealismo transcendental. Hegel criticou as concepções anteriores de filosofia como sendo sem vida e não históricas; sustentava que a filosofia está sempre enraizada na história, embora sempre persiga uma concepção de realidade como um todo em evolução, em que cada parte é animada por todas as outras.
[7] Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834) filólogo, filósofo e teólogo, que desenvolveu o método hermenêutico e o utilizou na tradução das obras de Platão para o alemão. Foi influenciado Kant e Fichte, mas não se tornou um idealista subjetivo.

[8] Maximilian Carl Emil Weber (1864 - 1920) foi um sociólogolo alemão economista e considerado um dos fundadores do estudo moderno da sociologia, mas sua influência também pode ser sentida na economia, na filosofia, no direito, na ciência política e na administração.
[9] Octávio Tarquínio de Sousa (1889-1959) foi um advogado, jornalista e historiador brasileiro. Sua mais importante obra é História dos Fundadores do Império do Brasil (1957).
[10] José Guilherme Merquior (1941-1991) foi filósofo, sociólogo e escritor brasileiro. Escritor prolífico, foi membro da Academia Brasileira de Letras. O alicerce da obra escrita é o que se chamaria de culturologia, ou mais especificamente, História das ideias, tributária da Geistgeschichte alemã.

Um comentário: